VIDEOBRASIL 40 | 17º Videobrasil

A+ a-
postado em 08/09/2023

Em formato definitivo de bienal de arte contemporânea, festival se abre a todas as práticas artísticas

   

Apesar do nome, o Videobrasil nunca foi apenas um festival de vídeo. Se esta mídia, inovadora à época, foi seu ponto de partida e enfoque principal nos anos 1980, linguagens como a performance e a instalação marcaram presença no evento desde sua primeira edição. Nos anos 1990, a proposta de expansão das fronteiras entre as práticas artísticas se intensificou ainda mais, como explicava Solange Oliveira Farkas em 1994: “O objetivo é olhar para a frente e ver como a arte eletrônica está caminhando. Realizar apenas mostras de vídeo já não corresponde ao movimento da videoarte”, dizia, citando também a webart, os games e os trabalhos híbridos que proliferavam. Mas é nos anos 2000 que o Videobrasil extrapola definitivamente não só o vídeo, mas a própria arte eletrônica: o foco na performance seria intensificado, assim como a ampla ocupação dos espaços expositivos do Sesc SP com instalações, esculturas e obras em outros suportes. O ápice deste “movimento inevitável” se deu com a realização, entre setembro de 2011 e janeiro de 2012, do 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil*, em formato definitivo de bienal de artes visuais que incluía todas as práticas, inclusive pintura, objetos e livros de artista. Estas obras passavam, ainda, a integrar a tradicional mostra Panoramas do Sul.

 

 

O Videobrasil não abandonava o vídeo, mas acompanhava e estimulava a própria experimentação e a contaminação que a arte eletrônica sofria, de um lado, e promovia, de outro, em todo o campo da arte contemporânea. Ao expandir seu escopo e ampliar sua ocupação na cidade (nos Sescs Pompeia e Belenzinho e, pela primeira vez na Pinacoteca do Estado), o festival teve também recorde de público, com cerca de 300 mil visitantes. O principal chamariz foi justamente um artista que não advinha do universo audiovisual, o dinamarco-islandês Olafur Eliasson, que reuniu em São Paulo 12 instalações de grande porte que se espalharam pelas três instituições. Com curadoria de Jochen Volz, diretor da Pinacoteca, a exposição Seu corpo da obra – primeira individual do artista na América do Sul –, reuniu trabalhos que apresentavam uma densa pesquisa ligada a questões da filosofia, física, neurociência e óptica, mas sempre convidando o visitante a experiências acessíveis e democráticas. 

Espelhos (em Take your Time), luzes (Esfera de luz lenta), fumaça (Seu caminho sentido), quedas d’água (Waterfall), painéis translúcidos (Seu corpo da obra) e projeções coloridas (Sua fogueira cósmica), entre outros recursos, são trabalhados por Olafur para ativar sentidos e sentimentos, sem exigir do público um repertório especializado. “A obra de Eliasson nos lembra constantemente de que as práticas artísticas só se completam, de fato, na fruição. Acessíveis, já que não exigem domínio das questões que as engendram, as experiências sensoriais que ele propõe tratam da exploração das sensações e visam o diálogo aberto com o público, questionando a preponderância do objeto sobre o sujeito e convidando o espectador a perceber-se construindo a obra”, explicava Solange em texto curatorial.

Resultado da duradoura investigação do dinamarquês com os espaços urbanos ao redor do mundo, a participação de Olafur no festival culminou ainda em intervenções não só dentro das instituições – em diálogo com a arquitetura de Lina Bo Bardi, no Sesc Pompeia, ou de Paulo Mendes da Rocha, na Pinacoteca – mas também em locais públicos. Em Your New Bike, o artista espalhou por São Paulo 12 bicicletas com rodas substituídas por espelhos, causando curiosidade e espanto nos passantes. “Eu não vejo minha obra como um mundo paralelo, mas como parte do mundo, por isso nunca me considero parte de uma vanguarda artística distante. Eu quero dialogar com as pessoas”, afirmou em entrevista à Fabio Cypriano, na Folha de S.Paulo. O projeto ficaria registrado no livro Seu corpo da obra, realizado pelo VB em parceria com as Edições Sesc, que reuniu ensaios fotográficos e artigos da curadora Lisette Lagnado e do crítico Guilherme Wisnik sobre a aproximação de Olafur com São Paulo. 

O outro grande destaque da vinda do artista foi a produção de Domingo, do cineasta brasileiro Karim Aïnouz, o sétimo filme da série Videobrasil Coleção de Autores. A intensa colaboração entre os dois, que resultou também na criação da instalação Sua cidade empática para a exposição, foi o ponto de partida para o curta-metragem, que reflete de modo poético as relações possíveis entre as obras de Eliasson e os espaços públicos de São Paulo. Ao tomar a cidade como matéria-prima, Karim e Olafur a ressignificam, propondo novas experiências sensoriais e percepções que surgem a partir do encontro. 

Os títulos das incontáveis matérias publicadas na imprensa criavam jogos de palavras para sintetizar alguns dos conceitos-chave da produção do artista. Entre eles, “Luz de Olafur” e “Espelho da metrópole”, no Estado de S.Paulo; “Arte em trânsito” e “Autor de paisagens”, na Folha de S.Paulo; e “O ilusionista”, na revista Serafina. Em suas falas, o autor ressaltava que o aspecto imponente das obras não as tornava meramente espetaculosas, pelo contrário: “Em meus projetos, eu posso dizer que é sempre possível desconstruí-los, ver como eles são feitos e, mesmo que em sua escala sejam imensos, não são incompreensíveis. Portanto, eu não deixo que o espetáculo se submeta à arrogância do comércio. Eu não quero submeter a ideia de beleza ao marketing. Eu quero permitir que algo muito lindo também seja crítico”. 

  
 

Panoramas do Sul e foco no oriente

Se Olafur ganhou os holofotes, não foi menos marcante no 17º festival a decisão de incluir na mostra principal, após quase três décadas de Videobrasil, as mais variadas práticas e linguagens. Panoramas do Sul recebeu 1295 inscrições, sendo um terço delas trabalhos fotográficos, pinturas, publicações e outras experiências não audiovisuais, das quais foram selecionadas 101 obras da América Latina, África, Leste Europeu, Oriente Médio, Ásia e Oceania. Até mesmo as performances, sempre realizadas à parte da mostra competitiva, passaram a integrá-la. Foram elas #4 (da série Corpo ruído – estudo para um soterramento), de Paula Garcia; Ponto de fuga, de Felipe Bittencourt; Bandeira de água benta/bandeira de água comum, de Deyson Gilbert; e Arquivo banana, de Leandro Cardoso. 

Quatro eixos – que não significaram uma divisão da premiação em categorias – balizaram as escolhas do comitê de seleção e pautaram a expografia da mostra principal: Cartografias do afeto reuniu trabalhos que partiam de questões de ordem subjetiva, transitando entre pessoal e coletivo; Natureza e cultura apresentou obras que tratavam das complexas relações  entre o que é natural e construído, entre o homem e a terra que habita; Maquinas de ver envolvia dispositivos ópticos e outros mecanismos que alteram o olhar e propõem novas visões; e Paisagens políticas focou em uma produção que convoca dilemas pertencentes à esfera pública, social e política, trazendo à tona questões latentes no passado e presente de um mundo violento e desigual.  

Neste sentido, vale lembrar que dado o período estendido entre a realização dos festivais – o anterior havia ocorrido quatro anos antes –, o contexto político que marcou a 17ª edição trazia consigo uma bagagem intensa de acontecimentos recentes que marcaram o mundo. No Brasil, a primeira presidenta mulher da história, Dilma Rousseff, assumira o cargo no início de 2011; no plano internacional, após a devastadora crise financeira iniciada nos EUA em 2008, o primeiro presidente negro, Barack Obama, vencera as eleições e governava o país; os conflitos e tensões no Oriente Médio – ainda com as consequências das guerras do Iraque e do Afeganistão, o assassinato de Osama Bin Laden e a Primavera Árabe (que incluiu também países do norte da África) –, seguiam matando milhares e mantendo o clima hostil entre Ocidente e Oriente. 

Neste contexto, o Videobrasil seguiu sendo uma das principais plataformas de troca cultural e diálogo entre a América Latina e os mundos árabe e oriental. Para além da presença de nomes como Ali Cherri (Líbano), Bouchra Khalili (Marrocos), Lixin Bao (China), Sherman Ong (Malásia), Tenzin Phuntsog (Índia) e Zafer Topaloglu (Turquia), o vencedor do Grande Prêmio da Panoramas do Sul foi o renomado libanês Akram Zaatari, presença constantes em todas as edições do VB entre 1996 e 2013. Em Tomorrow Everything Will Be Alright, vídeo com referências ao cinema egípcio e dedicado ao cineasta francês Éric Rohmer, o artista desenvolve uma história de amor, perda e saudade através de uma intensa troca de ideias ao longo de uma noite. De um oriente mais distante, 
o chinês Liu Wei chamou atenção com o vídeo Unforgettable Memory, um resgate dos atos na Praça da Paz Celestial contra o regime de Deng Xiaoping, em 1989, revelando as subjetividades da memória e a indiferença em relação a ela. 

Parte do maior time de artistas israelenses já presente na história do Videobrasil, a dupla Aya Eliav e Ofir Feldman apresentou a chamativa performance Art Idol. Enquanto os vídeos trazidos daquele país tratavam de questões mais diretamente políticas – “aqui, o artista que trabalha com fotografia e vídeo tem que fazer um esforço muito grande se não quiser tratar da realidade”, afirmou à Folha o curador israelense Sergio Edelsztein –, a ação da dupla traçava outro caminho, em diálogo tanto com a cultura pop quanto com a própria história da performance. Espécie de sátira do reality show televisivo American Idol, a obra simulava uma competição entre performers, escolhidos para reencenar clássicos de Marina Abramovic e Ulay, Yoko Ono, Pipilotti Rist e Orlan. Homenagem a estes grandes nomes, Art Idol não deixava de ser, também, uma crítica sobre as similaridades entre o sistema de arte e a indústria de massas. 

Ainda do lado oriental do globo, a israelense Moran Shavit foi premiada por seu vídeo Exploring, enquanto a indiana Natasha Mendonca ganhou um dos troféus por Jan Villa. Os outros agraciados foram o argentino Sebastián Díaz Morales e os brasileiros Adriano Costa, Carla Zaccagnini, Gabriel Mascaro, Dirceu Maués, Eder Santos e a dupla Cacá Vicalvi e Milton Machado. Além de receberem um troféu original criado por Tunga – uma peça com cristal e líquido âmbar, contidos por malha metálica e acoplados a uma câmera de vídeo –, foram concedidos a eles uma gama de programas de intercâmbios e residências artísticas em instituições de três continentes, a partir de mais um aprofundamento na política do Videobrasil de comissionamento da produção artística. 

Para além das redes já estabelecidas com a FAAP (São Paulo-SP), o Instituto Sacatar (Itaparica-BA) e o WBK Vrije Academie (Haia, Países Baixos), novas parcerias foram criadas com a Galeria Kiosko (Santa Cruz de la Sierra, Bolívia) e o Vidéoformes (Clermont-Ferrand, França). Pela primeira vez, o festival também teve entre os prêmios uma residência no continente africano, no centro de arte contemporânea pARTage, nas Ilhas Maurício. Uma grande novidade foi o Ateliê Aberto Videobrasil, residência concedida meses antes do festival para quatro jovens artistas paulistanos: Carolina Caliento, Guilherme Peters, Regina Parra e Paulo Nimer Pjota – todos hoje nomes estabelecidos no cenário. Escolhidos por um júri, eles passaram quatro meses desenvolvendo trabalhos na Casa Tomada, espaço independente criado por Thereza Farkas e Tainá Azeredo, em regime de colaboração e com acompanhamento de curadores e professores. As obras resultantes do processo de interação entre os artistas e deles com a cidade foram incluídas na mostra Panorama do Sul.

Como parte das atividades ligadas a este eixo, uma série de encontros com criadores, curadores e pesquisadores discutiram iniciativas editoriais, institucionais e curatoriais dedicadas ao Sul geopolítico do mundo – suas potências, carências e crescente protagonismo no universo das artes. Entre os participantes estavam a cubana Tania Bruguera, a mexicana Paola Santoscoy, a colombiana Nadia Moreno, o nigeriano Olu Oguibe e a brasileira Clarissa Diniz. Como afirmou Solange em entrevista à arte!brasileiros alguns anos depois, sobre o Sul Global, “há nesses territórios uma produção absolutamente potente e extraordinária não apenas no seu sentido, mas na própria operação, no fazer. E há 30 anos temos feito no VB esse trabalho de colocar um foco de luz num lugar que estava na sombra. (...) Acho também que, no cenário das artes, há um esgotamento nos países do Norte. Por que é que, já há algum tempo, esse mundo da arte global – Europa, EUA etc. – começa a olhar para os lugares chamados subdesenvolvidos? Por uma necessidade, por um esgotamento deles mesmos”.

Na telinha e no caderno

Após diversas edições produzindo o inovador e extrovertido Videojornal, com os bastidores do festival, e outras com parcerias com as emissoras Cultura e Manchete, o 17º festival inaugurou o Videobrasil na TV, temporada dirigida por Marco Del Fiol e Jasmin Pinho para a TV Sesc, com consultoria de Eduardo de Jesus. Os episódios trataram de todos os eixos da edição, com registros, entrevistas e ensaios visuais. Já no papel impresso, o Caderno Sesc_Videobrasil 08 – A Revista ganhou coordenação do curador Rodrigo Moura em um “desarquivamento altamente pessoal”, entremeando páginas de revistas antigas de cultura e obras de artistas como Arnaldo Antunes, Cildo Meireles, Claudia Andujar e Jorge Macchi. Com design de Marilá Dardot, o projeto relembra importantes veículos de imprensa do país e articula pesquisa, memória e trabalho artístico. Na linha de um festival com linguagens e suportes tão variados, caderno impresso e programa na TV explicitavam um Videobrasil cada vez mais plural e híbrido.  

Em texto para o catálogo, o diretor do Sesc SP Danilo de Santos Miranda confirmava a nova fase: “A arte propicia o enriquecimento da experiência humana, por meio de vivências sensíveis, e revigora olhares acerca do momento em que vivemos. As novas mídias e as imagens invadem nosso cotidiano em diversos formatos, provocando transformações culturais e sociais. O surgimento de diferentes suportes para a expressão artística, impulsionados pelo avanço tecnológico, cria uma efervescência de possibilidades visuais que interferem nos modos de ver e interpretar o mundo, favorecendo a relação e o contato entre as matrizes artísticas tradicionais e as inovações tecnológicas. É neste ambiente que o 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil se insere, trazendo alterações e absorvendo as linguagens artísticas que percorrem as inquietações atuais no campo das artes visuais”.

 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

_______________________________________________________________________________________ 

 

Imagens:
Acervo Histórico Videobrasil
Everton Ballardin/ Acervo Histórico Videobrasil 

1. Cartaz do décimo sétimo Videobrasil, por Angela Detanico e Rafael Lain.

Galeria 1
1. “Seu corpo da obra”, instalação de Olafur Eliasson.
2. “Seu caminho sentido"”, instalação de Olafur Eliasson.
3. Solange Oliveira Farkas e Fernando Oliva.
4. “Sua cidade empática”, instalação de Olafur Eliasson.
5. “Seu planeta compartilhado”, obra de Olafur Eliasson.
6. O artista dinamarco-islandês Olafur Eliasson.
7. “Art Idol”, performance de Aya Eliav e Ofir Feldman.
8. “Tapetes”, instalação de Adriano Costa.
9. “As Pérolas, como te escrevi”, videoinstalação de Regina Parra.
10. “Tomorrow Everything Will Be Alright”, vídeo de Akram Zaatari.
11. O cineasta Karim Aïnouz.
12. Tunga com o troféu criado para o festival.
13. O troféu criado por Tunga para o festival.

Galeria 2
1. "Tomorrow everything will be alright", de Akram Zaatari.
2. "Tapetes", de Adriano Costa.
3. "The unforgettable memory", de Liu Wei.
4. "Bravo-Radio-Atlas-Virus-Opera", de Carla Zaccagnini.
5. "Round and Round and Consumed By Fire", de Claudia Joskowicz.
6. "As aventuras de Paulo Bruscky", de Gabriel Mascaro.
7. "Em um lugar qualquer - Outeiro", de Dirceu Maués.
8. "Exploring", de Moran Shavit.
9. "Jan Villa", de Natasha Mendonca.
10. "Oracle", de Sebastián Díaz Morales.
11. "Pilgrimage", de Eder Santos.
12. "Vermelho" de Cacá Vicalvi e Milton Machado.