Texto de curadoria geral Solange Farkas, 2001

Fluxos, Fusões e Assimilações

Esta edição do Videobrasil passa a incorporar as tendências artísticas mundiais mais recentes e as novas tecnologias, como foco de atenção dentro de um projeto iniciado em 1983 para convocar e estimular a criação e a reflexão em torno do audiovisual brasileiro e latino-americano. As artes audiovisuais se juntam durante cinco dias para expor o rumo de suas buscas estéticas. Artistas da América Latina, norte-americanos, europeus, asiáticos e africanos se encontram para trocar experiências, certezas, dúvidas e intuições sobre o futuro.

A seleção de obras em vídeo, CD-ROM, webart e performances refletem a enorme influência da digitalizacão do som e da imagem nas práticas artísticas contemporâneas. Mais do que mero recurso de produção, essas mídias produziram uma alteração na forma de percepção das imagens, gerando trabalhos absolutamente inquietos e híbridos, vistos mais claramente nas obras selecionadas para a Mostra Competitiva do festival. Mais do que nunca, é necessário pensar e estimular o uso das tecnologias como meio de expressão criativa individual e sua utilização como um instrumento poético, a exemplo do nosso convidado especial, Gary Hill, um dos mais importantes artistas visuais, que reconstrói a estética do vídeo com sua brilhante solução para o dilema de ser um artista de final do século: o posicionamento de um corpo no centro do processo, ligando a linguagem à imagem, poética à poesia, e as palavras que falamos aos idiomas que encarnamos, como bem observou o crítico norte-americano John Handhart.

O festival inclui mais uma vez em sua programação uma série de performances, desta vez com os artistas Alexandre da Cunha, Marcello Mercado, Eder Santos e Luiz Duva. A criação de um novo espaço dedicado exclusivamente para a apresentação de projetos e lançamento mundial de obras será inaugurado pelo videoartista brasileiro Lucas Bambozzi e pelo chileno German Bobe.

As curadorias reúnem um conjunto de obras que desenham um panorama da cena mundial preservando a mobilidade dos trabalhos, tornando-os visíveis na integridade dos significantes de que eles se constituem em defesa irrestrita da experiência do olhar como meio de abordagem do mundo.

Estes programas tiveram a colaboração de algumas das mais importantes instituições internacionais dedicados à pesquisa dos meios eletrônicos, de países como Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Grécia, Inglaterra, México e Peru.

Claudia Giannetti, curadora da mostra LINK_AGE, enfatiza a interatividade entre obra, espaço e visitante, fazendo com que o espectador deixe de lado seu papel passivo para participar e dar vida aos trabalhos. Entre as escolhas estão sites e CD-ROMs de origens e temas diversos, que caracterizam as fusões, as convergências e as divergências da arte na era digital.

A videoarte grega chega até nós através de uma amostra selecionada por Dodo Santorineos, fundadora do Fournos, um centro de artes e multimídia que há uma década contribui para o desenvolvimento de novos suportes artísticos no país. O que se pode ver na seleção de Santorineos é a forma pela qual os artistas gregos vêm afirmando uma identidade local, sem deixar de lado preocupações presentes em todo o mundo. Assim, temas como a memória, ou ainda o papel das mulheres nas sociedades em transformação, aparecem nos trabalhos de autores de várias origens e formações.

Gabriel Soucheyre, curador e diretor da Videoformes, nos traz uma seleção que, sem negar os artistas predecessores, busca avançar explorando temas como o corpo, a sexualidade e a poesia eletrônica. Elementos ora reflexivos, ora visuais surgem nas obras escolhidos pelo curador, que teve a preocupação de reunir uma amostra das diferenças de uma França de rica heterogeneidade.

Da Bélgica, o curador Paul Willemsen, do Argos, centro de arte audiovisual criado em 1989 em Bruxelas para distribuir e ajudar a videoarte contemporânea daquele país, nos revela em sua seleção a imagem de um país dinâmico, associado à vanguarda da moda de Antuérpia e a uma ativa geração de artistas espalhados em cidades como Bruxelas e Gent. Um panorama híbrido, resultado de uma história recente e, como diz Willemsen, "acidental, fruto do confronto entre latinos e germânicos".

A seleção do curador canadense Hank Bull, do Western Front, um centro de artes que tem entre os focos de atuação a relação da arte com a performance, as redes e as telecomunicações, percorre temas como o corpo e a sexualidade, as especificidades e as tradições locais, a formação e a percepção de estereótipos. Lynne Cooke, curadora desde 1991 do Dia Center for the Arts, de Nova York – um dos mais ativos promotores da arte eletrônica nos Estados Unidos –, estabelece em seu programa relações do vídeo com outros meios como a literatura, os jogos eletrônicos e o cinema, e também uma espécie de metalinguagem surgida de material garimpado, em que colagens falam sobre a presença do próprio meio em nosso dia-a-dia.

Artista e curador, Michael Mazière traz um programa que inclui obras voltadas para a percepção e as sensações, deixando um pouco de lado a obsessão conceitual que se tornou tão característica de parte dos artistas anglo-saxões. Michael elege a emoção como guia, apresentando filmes circulares como "Ferment", em que a morte é o ponto de partida para uma viagem que percorre a cidade, até terminar em um nascimento.

Machismo, lesbianismo e dramalhão são assuntos recorrentes na obra da artista mexicana Ximena Cuevas, que sabe tratar com sutileza, ironia e humor temas como mentiras e (falsas) imagens, que induzem à realidade feita de representação. Nascida em 1963, Ximena, que já foi chamada em seu país de sereia, bomba e mágica, é a escolhida pelo curador Priamo Lozada, do Laboratorio Arte Alameda, na Cidade do México, para representar seu país no Videobrasil.

Pierre Bongiovanni percorre um território novo e traz para o Videobrasil uma seleção de webart. Diretor do CICV Pierre Schaeffer, na França, um dos mais ativos centros de arte a explorar as possibilidades artísticas criadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação, Pierre traz em sua seleção a multiplicidade de caminhos que caracteriza a webart. Os sites escolhidos dão uma idéia de como anda a produção nos chamados "ateliês virtuais", e reúnem obras apresentadas em encontros voltados para essa nova categoria, que já influencia meios tão distintos como o vídeo e a pintura.

O poeta, filósofo e videoartista italiano Gianni Toti volta ao Videobrasil, numa justa homenagem preparada pelo curador peruano José-Carlos Mariátegui, com obras que falam sobre a identidade latino-americana e também resgatam um patrimônio extinto. Como na trilogia "Tupac Amauta", obra em que língua e história criam relações entre si e também com o passado.

A obra de Rafael França, artista pioneiro da videoarte brasileira, será retomada numa retrospectiva e no lançamento de um documentário dirigido por Alex Gabassi, o segundo da série Videobrasil Coleção de Autores iniciada em 2000, com "Certas Dúvidas de William Kentridge", sobre o artista sul-africano.

Agradeço ao SESC São Paulo por acreditar sempre e continuar fornecendo condições para a realização de mais um Videobrasil. Agradeço também a todas as demais instituições, aos inúmeros e preciosos colaboradores, a minha equipe, e ao elenco de artistas e curadores que nos privilegiaram com participação e um ativo diálogo.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 19 de setembro de 2001 a 23 de setembro de 2001, p. 14 a 16, São Paulo, SP, 2001.

Texto de apresentação 2001

Curadorias

São programas que falam das fusões, das alianças e das transformações, hoje, do vídeo e da arte eletrônica. Híbridos, dialogando com diferentes suportes, os trabalhos selecionados por dez curadores da Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Grécia, Inglaterra, México e Peru permitem entrar em contato com o pensamento e a produção de pontos distintos do planeta. Nas obras apresentadas, as referências podem ser tão díspares quanto a língua dos incas, a vida dos esquimós, grupos religiosos em localidades do interior, ou até mesmo técnicas criadas por DJs para animar a noite. O artista italiano Gianni Toti, considerado o pai da videopoesia, e a mexicana Ximena Cueva, o mais efervescente novo talento em seu país, também estarão no centro de programas especiais.

Os vídeos, CD-ROMs e sites escolhidos mostram que, apesar do fenômeno da globalização e das transformações das noções de tempo e distância – com o aumento da velocidade e a redução dos gaps físicos –, aspectos locais podem ter papel fundamental para os autores. A popularização de instrumentos de trabalho e formas de disseminação eletrônicos também vem permitindo uma maior e mais diversificada produção, enriquecendo ainda mais o já vasto acervo de arte eletrônica disponível no mundo.

O corpo, a sexualidade, a interatividade e a crescente transferência de eventos do mundo real para o virtual parecem ser preocupações comuns de artistas que estão ajudando a construir e a repensar a produção contemporânea. As abordagens, contudo, não precisam ser homogêneas: humor, ironia, reflexão e crítica estão entre as possibilidades, que se multiplicam a cada dia. A idéia de padrão não tem espaço dentro desse democrático panorama, que engloba tanto uma geração de artistas que vêm concebendo obras especificamente para suportes eletrônicos, como outros que, oriundos de meios tradicionais, têm se mostrado ativos nas incursões a esse universo de novas possibilidades.

Para criar esse panorama internacional, o Videobrasil convidou curadores ativamente ligados à promoção da arte eletrônica: Claudia Giannetti, do Mecad, de Barcelona (Espanha), Dodo Santorineos, do Fournos Center for Art and New Technologies, de Atenas (Grécia), Gabriel Soucheyre, do Videoformes, de Clermont-Ferrand (França), Hank Bull, do Western Front, de Vancouver (Canadá), José-Carlos Mariátegui, do Alta Tecnología Andina, de Lima (Peru), e Lynne Cooke, do Dia Center for the Arts, de Nova York (Estados Unidos), Michael Mazière, curador independente baseado em Londres (Inglaterra), Paul Willemsen, do Argos, de Bruxelas (Bélgica), Pierre Bongiovanni, do CICV, de Montbéliard (França), Priamo Lozada, do Centro de la Imagen, da Cidade do México (México). A diversidade de olhares permitirá pensar e repensar a arte eletrônica, cujo lugar ao lado de suportes tradicionais já se tornou definitivo.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 19 de setembro de 2001 a 23 de setembro de 2001, p. 142 e 143, São Paulo, SP, 2001.

Texto de curadoria 2001

Videobrasil Coleção de Autores_ Rafael França

Em uma carreira curta, porém intensa e diversificada, Rafael França (1957-1991) investigou meios tão distintos quanto as intervenções urbanas (com o grupo 3NÓS3), as artes gráficas e, finalmente, a videoarte. Dez anos após a morte do autor, o Videobrasil homenageia este visionário com uma retrospectiva de vídeos e o lançamento de um documentário, segundo filme da Videobrasil Coleção de Autores. Resultado de uma exaustiva pesquisa, encontros emocionados com antigos colaboradores e mestres, o documentário, dirigido por Alex Gabassi, acompanha a trajetória artística do gaúcho Rafael França, cuja produção, rebelde e corajosa, expôs de forma direta sua própria vida. É o caso, por exemplo, de "Prelude to an announced death", de 1991, vídeo feito em Chicago – para onde se transferira em 1982, graças a uma bolsa de estudos – e que fala da aproximação de sua morte em conseqüência da Aids.

O documentário traz precioso material, como a entrevista dada pelo artista ao pesquisador americano Charles Nafus, além de imagens cedidas pelo Video Data Bank, de Chicago, onde Rafael França estudou e deu aulas. Entre os depoimentos, estão o de Regina Silveira, professora de Rafael França, do teórico Arlindo Machado, e de Mario Ramiro e Hudnilson Jr., companheiros do artista no grupo 3NÓS3. O trio se dedicava a intervenções urbanas, como o ensacamento de estátuas em São Paulo, e explorava habilmente a mídia: as ações só eram iniciadas com a chegada de jornalistas, num jogo envolvendo idéias como a visibilidade, a manipulação e a comunicação de massa.

Além disso, o vídeo conta com um pouco conhecido material de estudo do próprio Rafael França, vasculhado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo por Cristina Abi, do Videobrasil, responsável pela pesquisa de material. Graças à colaboração do museu, foi possível ter acesso às 190 fitas em diferentes formatos, doadas por Rafael França à instituição. Trata-se de imagens brutas usadas nas instalações, material institucional dirigido pelo autor, além de gravações de programas de TV e filmes usados em suas pesquisas. Hugo França, irmão de Rafael, também foi essencial colaborador para o vídeo, contribuindo com idéias e material.

Os diretores Alex Gabassi, Fabiana Werneck e Marco Del Fiol enfatizam o caráter pioneiro de Rafael França na videoarte, num momento em que poucos artistas brasileiros levantavam questões como as possibilidades de narrativa do suporte. Mais que um documentário, o vídeo, baseado no livro "Sem medo da vertigem", de Helouise Costa, é um tributo ao artista: "os entrevistados são como ilhas de lembranças", diz o diretor. Com a retrospectiva e o documentário, o Videobrasil traz ao público um valioso, porém pouco visto trabalho de um artista transgressor, que pesquisou e experimentou a videoarte como poucos no Brasil.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasill": de 19 de setembro de 2001 a 23 de setembro de 2001, p. 124 e 125, São Paulo, SP, 2001.

Ensaio Arlindo Machado, 2001

Rafael França: Obra como Testamento

A obra personalíssima de Rafael França para meios eletrônicos permanece até hoje não apenas underground, no sentido de pouco vista e conhecida, como também uma lacuna na reflexão sobre a arte brasileira mais recente. A rigor, o único esforço sistemático de interpretação dessa obra continua sendo o denso volume organizado por Helouise Costa, "Sem Medo da Vertigem", e publicado pelo Paço das Artes em 1997. Nesse sentido, a videografia de França demanda revisão urgente, para que se possa finalmente situar sua importância na história da videoarte, seja ela brasileira ou internacional. A súbita e inesperada redescoberta mundial da videoarte (na Bienal de Veneza deste ano o vídeo predominou como a principal linguagem de expressão dos jovens artistas) pode ser, quem sabe, um bom pretexto para avaliar a real contribuição desse artista gaúcho, falecido precocemente em 1991, antes de completar 34 anos e depois de deixar uma contribuição importante também nas áreas da pintura, gravura, performance, instalação, intervenção urbana, curadoria, crítica e reflexão sobre arte contemporânea.

A videografia de Rafael França é uma das mais coerentes e sistemáticas de toda a história de nossa arte eletrônica. Ela introduz e desenvolve temas e procedimentos com uma persistência e uma obsessão que não encontra paralelo em nenhuma outra obra nacional. É o caso de suas experiências com a narrativa de ficção. Amante da literatura, França adaptou para o vídeo o "Du Vain Combat" (1983) de Marguerite Yourcenar e o conto "Insônia" (1989) de Graciliano Ramos, além de ter realizado seu "Reencontro" (1984) sob clara influência do William Wilson de Edgar Allan Poe. A relação com a literatura é, aliás, um dos elos de ligação entre França e Gary Hill. Há, por exemplo, muitos pontos de contato entre a recriação de Graciliano Ramos por França em "Insônia" e a de "Thomas L'Obscur" de Maurice Blanchot em "Incidence of Catastrophe” (1987-88) de Hill: ambos partem da mesma situação inicial - os delírios de um homem que acorda no meio da noite e é acossado pelos fantasmas emergidos de seus pesadelos - para construir narrativas perturbadas, no limite mesmo da loucura. Também em "As If Exiled in Paradise" (1986), um escritor é aterrorizado pelas alucinações que brotam dos seus escritos, exatamente como o obscuro Thomas de Hill. A diferença, todavia, é que enquanto Gary Hill optou pela forma condensada e anagramática da poesia, França preferiu explorar o fluxo diegético da narrativa de ficção, segundo o modelo da prosa. A narrativa em meio eletrônico é um tema particularmente problemático na videoarte. Na verdade, poucos foram os videoartistas que se aventuraram pelos terrenos da ficção. Nos seus 40 anos de história, a arte do vídeo acumulou poucas experiências narrativas realmente dignas de atenção, sobretudo se pensarmos a diegese num sentido distintivo, tanto em relação aos modelos narrativos canonizados pelo cinema, como em relação aos modelos serializados da televisão. No Brasil, particularmente, quase não temos incursões nessa área. Além de Rafael França, apenas Artur Matuck, Lucas Bambozzi e, até certo ponto, Eder Santos apresentam uma produção mais sistemática nessa direção. Em geral, no terreno da videoarte predominam o documentário (e sua forma mista: o docudrama), a performance ou o depoimento pessoal no estilo "primeira pessoa", as experiências plásticas de tendência abstrata, o ensaio e a reflexão sobre a própria arte, a paródia ou a crítica dos meios de massa, além de outros "gêneros" mais pessoais e esporádicos. Já houve um tempo, inclusive, em que se supôs que o vídeo não era um meio adequado a propostas narrativas, afirmação que, malgrado contestável no plano teórico, é ainda corroborada pela prática efetiva do meio.

Uma das vertentes mais ricas da obra de Rafael França é justamente a experimentação de alternativas criativas para a ficção videográfica. Pode-se mesmo dizer que, excetuando-se um raro exemplo de registro quase documental - "Prelude to an Announced Death" (1991) - e um documentário fake - "Without Fear of Vertigo" (1987) - os demais trabalhos de França são sempre experiências de invenção de novas formas narrativas para o vídeo, sem prejuízo, entretanto, dos aspectos confessionais ou autotestemunhais, básicos dessa obra. Não se espere, todavia, encontrar nos vídeos de França narrativas clássicas, à maneira de uma certa literatura ou de um certo cinema, nem mesmo narrativas mais abertas, de feição moderna, conforme os modelos da nouvelle vague ou do cinema de vanguarda. As narrativas de França são totalmente experimentais, absolutamente elípticas e fragmentárias, explorando coisas como o contraste dinâmico entre cortes muito rápidos e muito lentos, seqüências inteiras apresentadas quadro-a-quadro (como se fosse uma projeção de slides), faux raccords com planos seccionados em plena duração de uma frase, imagens fora de foco, ausência de sincronia entre som e imagem (diálogos sem sincronização labial), longos trechos em silêncio, uso de diferentes texturas de cores ou preto-e-branco e assim por diante. Como princípio geral, França jamais recorre aos recursos de sedução consagrados pelo cinema e pela televisão. A mise-en-scène é completamente desdramatizada, a decupagem progride no sentido contrário do espetáculo, a descontinuidade é total. Imagens do Carnaval carioca, por exemplo, que teriam tudo para seduzir o espectador e evocar o exotismo local, resultam completamente desarticuladas em "O Silêncio Profundo das Coisas Mortas" (1988). Em geral, os personagens de França se apresentam diretamente à câmera, como se estivessem fazendo uma confissão ao espectador. Essa interpelação da platéia através do ponto de vista frontal da câmera e o olhar direto à lente transforma o espectador em interlocutor, produzindo um certo desconforto visual, já que não é normal que personagens de ficção se apresentem assim numa narrativa. Por sua vez, o uso de diálogos invertidos (apresentados de trás para a frente), como em vários momentos de "Reencontro", é outro traço em comum com a obra de Gary Hill, conforme o uso de palíndromos sonoros em "Why Do Things Get in a Muddle?" (1984) e "Ura Aru" (The Backside Exists) (1985-86).

"O Profundo Silêncio das Coisas Mortas" é uma história de amor e traição entre dois amantes homossexuais, em que presente e passado, realidade e memória, experiência e desejo são misturados de forma intrincada e contaminados ainda pela intromissão do social, do urbano (a cidade, o trânsito, o Carnaval) na intimidade dos amantes. "Reencontro" parece uma interpretação moderna (ambientada nos duros tempos da ditadura militar, com referências explícitas a métodos de tortura) da parábola de William Wilson, célebre narrativa de Poe sobre um personagem perseguido pelo seu alter ego e que termina se matando para fugir de si mesmo. "Getting Out" (1985) é uma narrativa tensa e claustrofóbica sobre uma mulher que simula a situação de estar trancada em casa num edifício que se incendeia. "Combat in Vain" (1984) e "Fighting the Invisible Enemy" (1983), por sua vez, trabalham com uma absorção criativa do efeito zapping (colagem caótica de imagens e sons, semelhante à varredura rápida dos canais de televisão), de modo a sugerir narrativas estilhaçadas, cacos de uma ficção possível mas não completada, a um passo da completa dissolução. França ocupa na história da videoarte brasileira uma posição sui generis. Ele vem de Porto Alegre, fora portanto do eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte, onde se concentrou a produção videográfica, e realiza boa parte de seus vídeos em Chicago, para onde foi inicialmente estudar e depois lecionar. As facilidades técnicas e o ambiente intelectual da School of the Art Institute of Chicago foram fundamentais para o desenvolvimento de seu estilo, o que aconteceu, aliás, com outros importantes nomes da arte eletrônica brasileira, como Carlos Fadon e Eduardo Kac. Esse relativo deslocamento com relação ao universo videográfico brasileiro atribuiu à obra de França um caráter distintivo e, num certo sentido, mais radical. A crítica à televisão e aos meios de massa em geral, bem como a insubordinação aos valores do mercado freqüentemente colocaram França em uma posição de antagonismo em relação aos seus colegas brasileiros da geração do "vídeo independente". Da mesma forma, ele será também um dos primeiros a romper com a primeira geração do vídeo brasileiro (os chamados "pioneiros") no que ela tinha de indiferença semiótica, aversão a questões relativas à retórica do meio e uma certa concepção meramente instrumental do vídeo, malgrado mantivesse ainda a mesma postura existencial dessa geração. De fato, França será um dos primeiros videoastas brasileiros a se dedicar seriamente à pesquisa dos meios expressivos do vídeo e a apontar caminhos criativos para a organização das idéias plásticas e acústicas em termos de adequação ao meio. Essa preocupação jamais foi marginal em sua obra, malgrado o fato dos aspectos semânticos, tão fortes e impositivos, muitas vezes saltarem ao primeiro plano com maior ênfase, obscurecendo as inovações no plano sintático.

Acima de tudo, o vídeo permitiu a França meditar sobre sua maior obsessão: a fatalidade da morte. De fato, o tema da morte (e sua versão limítrofe: o suicídio) atravessa a obra videográfica inteira desse realizador, como o pathos que dá unidade e coerência a todo o seu percurso. O personagem de "Reencontro" depara-se, de repente, com sua condição de mortalidade, o de "Getting Out" simula o seu próprio suicídio, o de "O Profundo Silêncio das Coisas Mortas" planeja o assassinato do amante infiel. Ao mesmo tempo, essa obra, de cunho bastante pessoal, esteve também centrada em uma indagação dramática sobre a questão da homossexualidade. Não se pode esquecer que a obra videográfica de França foi construída num momento (anos 1980) em que a Aids aparece como um flagelo incontornável, sobretudo (naquele momento) para as comunidades de homossexuais e hemofílicos. O drama homossexual por excelência, naquele contexto, era menos a exclusão social do que a inevitabilidade da morte. Nesse sentido, "Without Fear of Vertigo" ocupa um lugar estratégico dentro da obra de França. Nesse vídeo semifictício e semidocumental, o próprio França e vários amigos brasileiros e norte-americanos discutem as experiências do suicídio e do enfrentamento da morte. No final, vemos uma suposta acareação policial do personagem Peter Whitehall, condenado a cinco anos de prisão nos Estados Unidos por ter filmado o suicídio de seu companheiro Yann Bondy, vítima da Aids em estado terminal, e não ter feito nada para evitar a sua morte. França morreu em 1991, ele também vítima da Aids, depois de ter nos presenteado com um dos testemunhos mais autênticos de fidelidade a si próprio. Seu último vídeo, "Prelúdio de uma Morte Anunciada" (1991), terminado alguns dias antes de sua morte e tendo já os seus dias contados, é uma verdadeira celebração dos valores que nortearam sua vida e dos quais ele jamais abriu mão, nem mesmo nos momentos de maior agonia de sua doença. O vídeo, em seu despojamento quase absoluto, lembra muito de perto o "Blue" de Derek Jarman, este também realizado como uma espécie de testamento, por um diretor em estado terminal na evolução da Aids. No trabalho de França, o próprio realizador troca as últimas carícias com seu companheiro Geraldo Rivello, enquanto aparece na tela uma extensa lista dos nomes de todos os amigos brasileiros e norte-americanos que foram vitimados pela Aids e a trilha sonora deixa correr uma dilacerante interpretação de "La Traviata" pela soprano brasileira Bidu Saião, gravada em 1943. A última coisa que aparece no vídeo é a frase "Above all they had no fear of vertigo" [Apesar de tudo, eles não tiveram nenhum medo da vertigem], que retoma a idéia central de "Without Fear of Vertigo": assumir, até as últimas conseqüências, a intensidade da vida, enquanto ela puder arder no peito, pois a morte é o destino inevitável de todos.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 19 a 23 de setembro de 2001, p. 136 a 139, São Paulo, SP, 2001.

Entrevista Luciana Veras, 19/09/2001

Entrevista com Solange Farkas

Diário de Pernambuco – O que há de novo no 13º Videobrasil?

Solange Farkas – A diversidade das obras apresentadas e a própria estrutura de apresentação montada pelo festival para encarar esta nova realidade. O surgimento de plataformas digitais de edição e captação de imagens reposicionam as produções e democratizam ainda mais o ambiente da imagem eletrônica, trazendo uma nova geração de jovens realizadores e mudando o ambiente do festival.

DP – Como se dará o julgamento e a premiação?

Farkas – Um júri composto por especialistas internacionais (Brasil, México, Peru, Espanha e Canadá) assistiu aos trabalhos juntos com o público e, ao final da primeira semana do festival, atribuirá 3 prêmios em dinheiro (R$10.000,00) e o “Troféu Videobrasil”, criado pela artista plástica Carmela Gross, para cada uma das categorias: vídeo e novas mídias.

DP – De que forma as curadorias internacionais atuam no festival?

Farkas – Atuam como provedores de informação do que estará acontecendo de mais recente na arte eletrônica nos países considerados de Primeiro Mundo. São críticos e artistas dos principais centros de mídia que, a convite do festival, se encarregam de escolher as obras recentes de artistas destacados em seus países e com isto traçar um panorama mundial da arte eletrônica.

DP – Você considera a arte eletrônica ainda desconhecida no País?

Farkas – A arte eletrônica, grande estrela da contemporaneidade, ocorre no âmbito da urbanidade, haja visto que é da cidade ou da metrópole que emanam as fontes que inspiram a produção artística atual. Mas outro aspecto interessante deste processo é a questão da globalização aproximando as pessoas, encurtando as distâncias e conseqüentemente disseminando esta questão para fora de determinados eixos urbanos. Neste sentido, acho que a arte eletrônica no Brasil hoje, diferente do que ocorria na última edição do Videobrasil (1998), está passando por um processo de popularização, fazendo parte da vida das pessoas. Isto pode ser aferido, por exemplo, na enorme quantidade de trabalhos inscritos fora do eixo Rio-São Paulo.

DP – O que poderia ser feito, além de festivais como esse, para torná-la ainda mais popular?

Farkas – A existência de eventos e ações como estas desenvolvidas pelo Videobrasil e a abertura de espaço para estas expressões de contemporaneidade vão naturalmente transformar esta relação do público com a arte eletrônica, como aconteceu nos países desenvolvidos nas últimas duas décadas.

DP – Você também comanda a Associação Cultural Videobrasil. É complicado mantê-la? Quais são os trabalhos pernambucanos no acervo?

Farkas – O trabalho da Associação Cultural Videobrasil é, de certa forma, uma extensão, uma continuidade do projeto do festival, numa escala que transcende o caráter de efemeridade de um evento. Ou seja, proporcionar aos artistas que trabalham com o suporte eletrônico-digital algumas facilidades fundamentais para o desenvolvimento do meio, como o acesso a eventos internacionais através da inserção das suas obras em festivais ao redor do Mundo, inserção no acervo que permite uma circulação destes trabalhos pelo mercado consumidor deste tipo de trabalho. Quanto à presença de trabalhos pernambucanos em nosso acervo, temos o orgulho de ter a disposição do público e pesquisadores em geral uma compilação dos principais trabalhos produzidos pela produtora TV VIVA de Olinda, são trabalhos que participaram das primeiras edições do festival assim como de todos os artistas pernambucanos que durante estes anos tem participado do festival.

Diário de Pernambuco. Recife, 19 de setembro de 2001. Caderno Viver, p. D1.

Texto institucional Danilo Santos de Miranda, 2001

Reinvenção do Olhar Contemporâneo

A idéia de cultura está, para o SESC de São Paulo, vinculada diretamente ao processo de educação para a cidadania, compreendida como forma de perceber e interpretar a realidade circundante, como estímulo e incentivo à participação social, como instrumental para que indivíduos e grupos possam expressar-se e comunicar suas idéias, saberes e opiniões, como modo de manifestarem suas reivindicações.

Esses apontamentos revelam a contínua preocupação da instituição em oferecer ao público, mais do que eventos culturais, atividades que demarquem um conceito e ampliem a reflexão em torno de temas específicos, porém instigadores de novas produções, assim como de leituras renovadas. Trata-se de aliar uma aguçada sensibilidade para a observação de novas tendências à capacidade de conceber, elaborar e realizar projetos marcados, comumente, pela ousadia, mas, sobretudo, por um apurado senso estético, artístico e cultural.

Em sua 13ª edição, o Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica exemplifica de maneira concreta essa visão, ao manter acesa a chama criativa que reúne o pensamento artístico-poético e a invenção tecnológica, ao mesmo tempo em que fortalece a troca entre curadores, artistas e público.

Criado como um panorama da arte eletrônico-digital contemporânea, o mais extenso e significativo da América Latina, o Festival propõe a análise e a reflexão sobre o impacto das novas mídias na produção artística. Imagem e som integram-se a arcabouços tecnológicos em transformação constante.

A convergência de novas mídias na criação artística e o resultado produzido a partir de tal conjunção constituem o principal enfoque do 13º Videobrasil.

Mostras competitivas, mostras informativas internacionais, palestras, encontros e workshops com artistas e curadores de várias partes do mundo, exposição de videoinstalações, apresentação de performances, CD-ROMs e webart compõem a programação. Paralelamente, ocorrem a participação especial de Gary Hill e o lançamento do segundo título da série Videobrasil Coleção de Autores sobre a obra de Rafael França.

Difusão, intercâmbio, análise, pesquisa e experimentação. Esse é o formato que distingue o Festival como fórum atento às novas linguagens, aberto à vanguarda e ao reconhecimento de vozes expressivas na videoarte. São esses princípios que concorrem para fortalecer a ligação entre o SESC de São Paulo e a Associação Cultural Videobrasil, uma parceria voltada à construção contínua do conhecimento.

Para o SESC, essa proposta fundamenta-se em processos complementares de sensibilização, apreciação, fruição e produção artística; amplia-se para áreas de atuação distintas, embora, muitas vezes, inter-relacionadas como as artes plásticas, música, dança, teatro, cinema, literatura e multimídia; confirma-se pelo rol de possibilidades de contato do público com a arte através de espetáculos, exposições, cursos, aulas abertas, palestras e workshops.

É o conceito de educação informal associado ao compromisso contínuo com a inovação e a pesquisa, seja no âmbito da linguagem, do suporte, do material ou, ainda, das temáticas. A parceria arte-tecnologia exige do homem a reeducação do olhar, da percepção e da sensibilidade. Para o SESC, trata-se de ampliar a compreensão da arte contemporânea e a formação crítica de novos leitores.

(catálogo 13º Videobrasil). ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 19 de setembro de 2001 a 23 de setembro de 2001, p. 12 e 13, São Paulo, SP, 2001.