Texto de curadoria geral Solange Farkas, 2017
Uma breve mirada para o cenário internacional da arte não deixa dúvidas: o Sul está por toda parte. O reconhecimento desta presença e, portanto, da importância desta perspectiva em qualquer espécie de concerto global de vozes torna evidente o acerto da aposta na produção dos países da região, alinhavada há mais de duas décadas e expressa sobretudo no Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Se desde sua criação, em 1983, o Festival vem buscando alimentar articulações entre a produção brasileira e seus interlocutores de outros países do Sul, colocando em contato as narrativas e inquietações que emergem da pesquisa desenvolvida por seus artistas, o protagonismo recente dessa produção em grandes exposições internacionais é apenas um dos indícios de que o mundo da arte do “Norte” reconhece a necessidade de tomar parte de e amplificar o diálogo em torno ou a partir Sul.
Não por acaso, e pela primeira vez, todos os esforços de organização e produção do 20º Festival estão concentrados nos Panoramas do Sul, que ocupam espaços múltiplos do Sesc Pompeia, em São Paulo, e se desdobram em exposição, programa de vídeo e performances, além de uma série de ações de ativação, boa parte delas envolvendo os próprios artistas. Composto a partir de propostas e portfólios enviados por artistas das diversas regiões do Sul em resposta a uma convocatória aberta, o conteúdo do 20º Festival reafirma a importância estratégica de um mecanismo que permite, em larga medida, perscrutar zonas não mapeadas da produção artística destas regiões, revelando pesquisas que ainda não foram reconhecidas, absorvidas ou chanceladas pelo sistema da arte. Se envolve risco e esforço – a cada edição do Festival, registra-se um aumento exponencial de inscrições –, o processo de seleção baseado em convocatória ainda é a forma mais democrática de compor um conjunto à altura da potência e da diversidade do que se produz neste eixo simbólico, a despeito do aval sempre limitador do mercado.
Não é surpresa que uma produção desde sempre pautada pela ideia de resistência e pela vocação política floresça e se refine em um momento de crise instalada, retrocesso, perda de conquistas e incerteza absoluta. Na medida em que nos aprofundamos em um ciclo de posições extremistas que pode nos levar para qualquer lugar, o desejo de elaborar uma narrativa simbólica à altura das questões deixadas como herança pelo nosso passado torna-se mais e mais premente – assim como o de rever ideias de futuro que faliram, para, por que não, desenhar uma perspectiva menos tenebrosa que a que temos à frente. É neste contexto que o recurso ao vídeo, identificado, pela própria natureza, ao registro do real, volta a se fortalecer. A necessidade de contar histórias ditas menores, que foram obscurecidas pelo discurso sempre mais volumoso e onipresente do capital, dá ao vídeo um fôlego narrativo que antes era privilégio do cinema.
Macro, micro
A emergência de novas narrativas, que reivindicam espaço e lugares de escuta, e o movimento intenso de reconfiguração sociopolítica são características destes tempos, marcados pela iminência de crise em todos os âmbitos. Diante deles, o conjunto de artistas selecionados para o 20º Festival expressa a vontade de expandir nossa forma de olhar para o mundo, por meio de práticas que atravessam as fronteiras postas entre arte e ciência e se movem na direção de curiosidades primordiais: a origem do homem e da vida, a evolução das dinâmicas sociais que nos definiram através dos tempos, nossas formas de fazer política. Sugerem comovisões que, sem perder o foco no que é próximo, palpável e urgente, consideram a poesia do universo e do tempo.
Olhando sob outro ângulo, podemos dizer que as obras selecionadas reafirmam a ideia de resistência como um dos paradigmas mais importantes da consciência humana – capaz de fazer de nós quem realmente somos, quem queremos ser, e nos devolver um senso de humanidade (em detrimento do senso de poder). Essa ideia de resistência, que ajudou a nortear o pensamento curatorial desta edição, não se configura necessariamente como aventura ou ato de bravura, mas como um modelo de troca em torno da experiência da sobrevivência; os artistas usam seu vocabulário visual para articulá-la como movimento, como momento, em constelações onde se somam o fato lembrado ou imaginado e o próprio ato da reinvenção.
A opção declarada pela pesquisa que produz experiências potentes de resistência, não binárias e desconformes, voltadas a iluminar cantos obscuros, reverter lógicas simplistas – e olhar de novo para onde estamos, para as origens do que somos e para a maneira como categorizamos nossos saberes –, traduz nosso desejo, como instituição, de caminhar na direção contrária ao que percebemos como um esvaziamento progressivo dos discursos que circulam e moldam o campo da arte. Nosso contexto cultural impõe sucessivas derrotas à ambição da arte de proporcionar experiências simbólicas relevantes ou até mesmo desejáveis, em benefício de outros campos, mais palatáveis, da cultura. Na contramão da irrelevância progressiva, e de formas muito diversas, a produção reunida nos Panoramas do Sul se opõe ao esmagamento progressivo de nossos horizontes, para preservar, ainda que penosamente, alguma perspectiva de futuro.
Texto do catálogo